Leia também: Remédios institucionais contra o autoritarismo
Em paralelo, as análises sobre a ampliação objetiva das funções dos órgãos do Sistema de Justiça, com o aumento e consolidação do controle jurisdicional sobre a sociedade em geral, e sobre os demais poderes no particular, também apontam, além do ativismo judicial, uma evidência da participação dos membros das instituições da área do Direito no espaço público da política.
Junto à mídia tradicional, o Sistema de Justiça exerceu, por ação ou omissão, papel fundamental em todos os grandes eventos que fragilizaram a democracia brasileira em tempos recentes. E ao lado do advento do governo Bolsonaro e do bolsonarismo, membros das instituições do sistema têm aparecido na cena pública, questionando pautas e valores conquistados pelos processos civilizatórios, classificando-os como “de esquerda”.
Citando o artigo “Marketing de lacração: entre a teoria e os resultados” publicado no site Estudos Nacionais, mantido por seguidores de Olavo de Carvalho, o defensor público Jovino Bento Júnior ajuizou, no começo do mês de outubro, uma Ação Civil Pública contra a rede de lojas Magazine Luiza, por instituir um programa de trainee exclusivo para candidatos negros. Segundo ele, a iniciativa discriminaria milhões de trabalhadores brancos e de outras etnias.
No último dia 21 de novembro um manifesto foi publicado por 34 juízes, em repúdio ao que chamaram de “infiltração ideológica das causas sociais” no interior da Associação dos Magistrados do Estado de Pernambuco (Amepe), da qual fazem parte. A manifestação do grupo ocorreu após um curso online sobre “Racismo e suas percepções na pandemia”, além da publicação da cartilha “Racismo nas palavras”, promovidos pela associação.
Dizendo-se indignados e desconfortáveis, os juízes e juízas usaram como justificativa o distanciamento da “essência isenta que deve pautar a magistratura”.
São dois exemplos de vários, em que membros do Sistema de Justiça se colocam publicamente contrários a debates acerca de questões estruturais, como o racismo, e a políticas inclusivas, sob um discurso mascarado de isenção, encobrindo, na verdade, seus valores e referências de sociedade.
Em sua extensa produção teórica, Karl Marx adotou o termo cretinismo parlamentar para criticar aqueles que enxergavam o parlamento como o centro das disputas políticas, menosprezando o que se travava fora dele. O mesmo comportamento se observa em relação a diversos atores do Sistema de Justiça, para quem o mundo pode ser observado a partir de uma ótica em que eles estejam no centro, como a medida de todas as coisas. O Direito é visto apenas em sua acepção instrumental, para ser aplicado no que convém, nada que contrarie os interesses de uma classe econômica dominante e predominantemente branca, masculina e heteronormativa.
O interessante é que, ao supostamente exigirem “neutralidade” diante do racismo, as personagens aqui narradas estão, na verdade, marcando sua posição na ascensão das forças conservadoras e reacionárias, que estão operando em todos os segmentos da sociedade brasileira, e que encontram terreno fértil no Sistema de Justiça, alimentando uma cultura neofascista, que se expressa das mais diversas formas de intolerância.
O racismo estrutural é o conceito que posiciona a discriminação, inerente à ordem social e às dinâmicas que consagram privilégios raciais e os mecanismos que os legitimam. Reduzi-lo a uma “pauta ideológica” não é ignorância ou estupidez, é opção de cretinos, que possuem a clareza que contribuem para a manutenção de um sistema que exclui sistemicamente por motivos raciais.
A intolerância dentro do Poder Judiciário não é um fenômeno conjuntural. Historicamente hermético a qualquer participação, possui uma estrutura de padrão hierárquico com marcas indeléveis de autoritarismo em seu comportamento. A insurgência de grupos no interior das corporações do Sistema de Justiça não diz nada sobre a pauta em si mesma. Apenas revela que os elementos históricos de uma cultura de classe dominante que se alimenta do racismo se fazem fortemente presentes.
O princípio ético auto referenciado que rege o defensor público que se insurgiu contra “violações de direitos de milhões de trabalhadores”, e os juízes pernambucanos irresignados com a agressão à “essência isenta” da magistratura, é gêmeo siamês das premissas de certo dirigente político que chama quilombolas de “arroubas”, que “nem pra procriarem servem”. Um princípio, em gênese, incompatível com a democracia, ou melhor dizendo, com a civilização.
Fonte: Brasil de Fato – Edição: Rogério Jordão