Há ampla maioria que aguarda ansiosamente pela chegada de vacinas que possam pôr fim à necessidade do imperativo distanciamento social e permitam o retorno, ao menos gradativo, ao velho normal e a uma boa aglomeração. Estes, eu incluso, não só optarão por se vacinar como o farão o quanto antes possível.
Ocorre que haverá sempre um pequeno grupo que escolherá não tomar vacinas, pautado em teses sem qualquer lastro em fatos ou análise com base científica. Aliás, ao considerar que no ano de 2021 ainda existem pessoas que acreditam que a Terra é plana, essa situação infelizmente não deveria surpreender.
A questão é: o empregador pode obrigar o empregado a tomar a vacina da Covid-19?
Antes de tudo algumas premissas. A vacina já estará aprovada pela Anvisa, será gratuita ou sem custo ao empregado, e ele não se encontra naqueles grupos não testados ou com restrição ao uso, tais como grávidas, crianças e pessoas com alergia a algum dos insumos utilizados. O empregado modelo deste artigo se enquadra dentro do público-alvo, sem restrições que não a sua própria convicção.
De pronto, o argumento contrário em que é necessário pôr uma pá de cal é o que prega que o risco de não se vacinar é exclusivo ao indivíduo que opta por assim agir, de modo que é apenas a sua própria integridade que em tese se está colocando em perigo.
Nada mais equivocado. A vacinação é, antes de tudo, um instrumento de saúde coletivo. A Medicina, tal qual o Direito, não é pautada por exatidão matemática, de modo que se trabalha com instrumentos com certo grau de imprecisão, inexistindo vacina 100% eficaz, que a todos proteja, ou que se possa garantir que não gerará nunca efeitos adversos graves.
Ocorre que o risco que se coloca entre se vacinar e não se vacinar é completamente dissonante. Tome-se como exemplo a vacina conhecida como Sabin (para poliomielite com vírus atenuado) — há o risco de um caso para cada um milhão de doses aplicadas de causar poliomielite paralítica associada à vacina [1], ou ainda o da vacina da febre amarela, que segue estatística similar [2]. Isso para vacinas que utilizam vírus atenuado (ou seja, “vivo” [3]). As que estão sendo desenvolvidas e em estágio avançado contra a Covid-19 não utilizam essa técnica, mas, sim, outras ainda mais seguras (vírus inativado — Coronavac; vetor viral — Astrazeneca/Oxford e Sputink V; RNA — Pfizer e Moderna).
Por outro lado, quando a cobertura vacinal cai, o risco do contágio aumenta exponencialmente, como comprovam os surtos de sarampo em Roraima e no Amazonas. Em 2015, a cobertura era de 96%, tendo baixado para 84% em 2017 [4].
Assim, vacinar-se é uma questão de saúde pública para controle epidemiológico, pois, considerando que a vacina em alguns casos não surte efeitos, bem como que há determinados grupos que não podem ser vacinados em situações particulares (crianças, idosos, grávidas ou imunodeprimidos dependendo de qual o imunizante), é extremamente importante que todos aqueles que possam ser imunizados assim o façam para garantir uma proteção coletiva (a tão falada imunidade de rebanho).
Retomemos ao tema específico.
A Constituição Federal disciplina que é direito do trabalhador a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (artigo 7º, XXII da CF), de modo que não é de difícil intelecção que o ambiente de trabalho deve, dentro do tanto quanto possível, ser seguro.
A CLT normatiza no seu capítulo V (“Da Segurança e da Medicina do Trabalho”) que cabe às empresas cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, bem como instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais (artigo 157, I e II), cabendo aos empregados observar as normas de segurança e medicina do trabalho, inclusive as instruções constantes nas ordens de serviços emitidas pelo empregador (artigo 158, I).
Já no período pandêmico e compondo a legislação de emergência a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, coloca entre as possibilidades de enfrentamento a determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas (artigo 3º, III, “e”.). Não se trata de comando novo no âmbito do direito positivo brasileiro. Rememore-se que a Lei 6.259 do já razoavelmente distante ano de 1975 e que dispõe sobre a organização das ações de vigilância epidemiológica e sobre o Programa Nacional de Imunizações consagra em seu artigo 3º vacinações de caráter obrigatório [5].
Nesse norte, o empregador pode se valer do seu poder diretivo e regulamentar para impor a apresentação de comprovante de vacinação contra a Covid-19 do seu empregado.
Sobre o tema merece menção as disposições pertinentes que constam na Norma Regulamentar 32 cuja aplicação, muito embora voltada aos profissionais que atuam em serviço de saúde, podem servir de baliza. Assinala que sempre que houver vacinas eficazes contra outros agentes biológicos a que os trabalhadores estão, ou poderão estar, expostos, o empregador deve fornecê-las gratuitamente, sendo que deve assegurar que os trabalhadores sejam informados das vantagens e dos efeitos colaterais, assim como dos riscos a que estarão expostos por falta ou recusa de vacinação, devendo, nesses casos, guardar documento comprobatório e mantê-lo disponível à inspeção do trabalho [6].
Importante o destaque no sentido de que a obrigatoriedade não se confunde com vacinação forçada. O Supremo Tribunal Federal firmou em 17 de dezembro último, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587, que versam sobre a vacinação contra a Covid-19, e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1267879, em que o ponto de debate é a recusa à imunização por convicções filosóficas ou religiosas, as seguintes teses:
— ARE 1267879 (com repercussão geral): “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, tenha sido incluída no plano nacional de imunizações; ou tenha sua aplicação obrigatória decretada em lei; ou seja objeto de determinação da União, dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”.
— ADIs 6586 e 6587: “I) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, facultada a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade; e sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente. II) Tais medidas, com as limitações expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência.”
Dessa forma, o empregado reticente que, mesmo instado a tanto, opta por não se vacinar, pode ter o seu contrato de trabalho rompido por justa causa.
Não bastasse todo o exposto, observe-se que a Norma Regulamentar 1 dispõe no seu item 1.4.2 que cabe ao trabalhador cumprir as disposições legais e regulamentares sobre segurança e saúde no trabalho, inclusive as ordens de serviço expedidas pelo empregador, sendo que constitui ato faltoso a recusa injustificada do empregado ao seu cumprimento. Dessa forma, o ente patronal no exercício do poder fiscalizatório pode aplicar a penalidade máxima da ruptura motivada nos termos do artigo 482, alínea “h”, da CLT (ato de indisciplina). Como consequência, o laborista perderá o direito ao aviso prévio, 13º salário, férias proporcionais + um terço, multa de 40% do FGTS e guias para soerguimento do Fundo de Garantia e requisição do seguro desemprego.
A propósito, tendo ciência o empregador da recusa de participar do programa de vacinação em massa, há o dever de adotar reprimenda, pois, não o fazendo, estará colocando em risco os demais empregados que se encontram no mesmo ambiente laboral e se sujeitando em pior cenário a eventual reparação de danos de outros trabalhadores que venham a se contagiar em virtude desse fato.
[1] Disponível em: <https://www.cedipi.com.br/2013/01/vacina-poliomielite/>. Acesso em 22/12/2020, às 13:50. [2] Disponível em: Organização Pan-Americana da Saúde – < https://cutt.ly/qhMkt1W > Acesso em 21/12/2020, às 22:00. [3] Vírus não é um ser vivo, mas é uma expressão consagrada que para fins didáticos facilita a compreensão. [4] Disponível em: < https://revistapesquisa.fapesp.br/as-razoes-da-queda-na-vacinacao/#:~:text=Uma%20consequ%C3%AAncia%20da%20redu%C3%A7%C3%A3o%20no,retorno%20da%20infec%C3%A7%C3%A3o%20ao%20pa%C3%ADs. > Acesso em 21/12/2020, às 23:00. [5] “Art. 3º – Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório. Parágrafo único. As vacinações obrigatórias serão praticadas de modo sistemático e gratuito pelos órgãos e entidades públicas, bem como pelas entidades privadas, subvencionadas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais, em todo o território nacional.” [6] Disponível em: < http://www.guiatrabalhista.com.br/legislacao/nr/nr32.htm ). Acesso em 22/12/2020, às 14:00.Jorge Batalha Leite é juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região deste 2018, tendo atuado previamente como magistrado na 15ª Região desde 2016 e como assessor de desembargador do Trabalho de 2009 até o seu ingresso na magistratura.
Fonte: Revista Consultor Jurídico