Os deputados agora vão analisar destaques, pontos que podem ser suprimidos do texto aprovado, mas a expectativa é de que o grosso seja mantido uma vez que a oposição não conta com votos suficientes para aprová-los. O Senado Federal tem que analisar a matéria antes de 9 de setembro, quando a MP perde a validade.
Muitas das propostas foram costuradas pelo Poder Executivo, por meio de representantes do então Ministério da Economia. Mas o governo não assumiu o protagonismo público para evitar polêmica e garantir que o texto passasse sem percalços.
Os textos inseridos na MP 1045 foram rechaçados por sindicatos, auditores fiscais do trabalho, magistrados e pelo Ministério Público do Trabalho, que defendem que pontos do relatório são inconstitucionais.
“As reduções de direitos previstas, como a possibilidade de firmar contratos civis e sem garantias trabalhistas e previdenciárias, podem aumentar muito os riscos de superexploração dos trabalhadores”, afirma o procurador do trabalho e vice-coordenador nacional da área de combate à escravidão do MPT, Italvar Medina.
Trabalhador de ‘segunda classe’ sem contrato e sem direitos – Centrais sindicais denunciam que a criação do Regime Especial de Trabalho Incentivado (Requip), defendida pelo governo, estabelece uma espécie de trabalhador de “segunda classe”, sem contrato de trabalho e, portanto, sem direitos (como férias, FGTS, contribuição previdenciária, entre outros). O Requip é destinado para quem não tem vínculo com a Previdência Social há mais de dois anos, trabalhadores de baixa renda que foram beneficiados com programas federais de transferência de renda e jovens com idade entre 18 e 29 anos.
A síntese do Requip é a prestação de serviços ou trabalho eventual associado à formação profissional, com assinatura de um termo de compromisso, mas sem caracterizar relação de trabalho. Os pagamentos ao profissional são chamados de Bônus de Inclusão Produtiva (BIP) e de Bolsa de Incentivo à Qualificação (BIQ).
“Esta modalidade de trabalho, Requip, ficará completamente à margem da legislação trabalhista, já que não haverá vínculo empregatício; não haverá salário, mas apenas o pagamento de ‘bônus de inclusão produtiva’ (pago com recursos públicos) e de ‘bolsa de incentivo à qualificação’; não haverá recolhimento previdenciário ou fiscal; não haverá férias, já que trabalhador terá direito apenas a um recesso de 30 dias, parcialmente remunerado; o vale-transporte também será garantido apenas parcialmente”, informa nota da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do MPT.
“Embora o objetivo ‘social’ do programa seja relevante, trata-se de um programa que promove a exploração da mão de obra, subvertendo o direito ao trabalho assegurado como direito social pela Constituição”, afirma análise do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). A Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar) manifestou preocupação com o Requip, pois entende que pode ser um caminho para “legalizar a informalidade” do trabalhador do campo.
FGTS menor para quem for demitido – Outro ponto criticado pelas centrais sindicais é usar a MP para instituir o Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (Pirore), ressuscitando pontos da MP 905, que previa a carteira de trabalho Verde e Amarela. Segundo o texto do projeto, o programa é voltado para jovens adultos de 18 a 29 anos que procuram o primeiro emprego com carteira assinada e pessoas com mais de 55 anos sem vínculo formal de emprego por mais de um ano. Ambos os grupos, principalmente o primeiro, são afetados por taxas de desemprego acima da média da sociedade.
O salário-base mensal tem o teto de dois salários mínimos e, nessa modalidade de contratação, os empregados terão direitos como 13° salário e férias pagas parceladamente. Além disso, a indenização sobre o saldo do FGTS em caso de demissão também poderá ser paga parcelada e antecipadamente. O valor da multa nesse caso deixa de ser de 40% do total do FGTS e cai para 20%.
Outra perda para o trabalhador é a redução da alíquota do FGTS depositada pelas empresas, que cai de 8% para 2% para as microempresas, 4% para empresas de pequeno porte e 6% para as demais empresas. Pela regra vigente, um trabalhador que recebe salário de R$ 2,2 mil tem o depósito mensal de R$ 176 no seu FGTS. Se ele for funcionário de uma microempresa receberá o depósito de R$ 44.
“Priore é um novo nome para a Carteira Verde Amarela. São questões que precisam ser examinadas para evitar categorias de trabalhadores com menos direitos”, afirma o juiz Valter Pugliese, diretor de assuntos legislativos da Anamatra.
Fiscalização trabalhista sem multa e com ‘orientação’ para escravagistas – Um dos “jabutis” apontados pelo MPT altera a fiscalização trabalhista e prevê que antes de um empregador ser multado por infringir a lei, devem ser realizadas duas visitas dos auditores-fiscais do trabalho, mesmo para situações graves de violações, como infrações às normas de saúde e segurança (que impõe aos trabalhadores riscos de doenças e acidentes). “Chega-se ao cúmulo de impor a dupla visita até mesmo para ilícitos verificados em casos de trabalho análogo ao de escravo”, critica o MPT em nota técnica.
A proposta faz uma ressalva para “irregularidades diretamente relacionadas à configuração da situação” de escravidão. Contudo, os procuradores que assinam a nota afirmam que isso é inconstitucional por que não há nenhuma irregularidade trabalhista relacionada à vítima que não esteja diretamente relacionada à escravidão e que não seja fruto de crime por parte do empregador.
Os procuradores também apontam que a proposta quer reduzir o caráter de fiscalização e tornar a atividade dos auditores fiscais como uma ação apenas orientativa. “O que pode resultar em estímulo à prática de ilicitudes e incremento de acidentes, mortes e adoecimentos nas relações laborais”, entendem 17 procuradores que assinam uma nota técnica da instituição. “Quanto ao combate ao trabalho escravo e infantil, em particular, traria enormes prejuízos. Primeiramente porque retiraria poderes investigatórios de diversos órgãos, como próprio Ministério Público e a Polícia Federal”, afirma o procurador Medina, do MPT.
Aposentadoria pode demorar mais tempo – Outro ponto destacado pelas centrais sindicais como prejudicial é que o trabalhador que tiver o contrato suspenso deverá contribuir como segurado facultativo (autônomo) para o INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social), seguindo as alíquotas estabelecidas para o segurado obrigatório (aqueles que têm carteira assinada). Ou seja, tira a obrigação do patrão de fazer a contribuição.
O advogado trabalhista Antonio Megale, da LBS Advogados, destaca que sem o pagamento da contribuição previdenciária, o período de suspensão do contrato não contará como tempo de contribuição para conseguir a aposentadoria — ou seja, o trabalhador terá de esperar mais tempo para ter direito ao benefício. “Isso causará prejuízos ao trabalhador quando for requerer sua aposentadoria”, afirma. “É o empregador que deve pagar a contribuição previdenciária, e não só o trabalhador, em momento de pandemia e dificuldades financeiras, com redução salarial”, entendem as centrais sindicais.
Dificuldade de acesso à Justiça gratuita – Rechaçadas pelas centrais sindicais, as alterações de artigos da legislação trabalhista atual que recuperam dispositivos de outras medidas provisórias que já caducaram, como a MP 925 e a MP 927, também estão presentes na proposta. Uma delas altera a gratuidade da Justiça trabalhista.
O advogado Megale explica que o relatório da MP passa a exigir que seja feita a comprovação da renda para fins de acesso à justiça gratuita, sendo que atualmente, basta a declaração de insuficiência de recursos. “O trabalhador fica com medo de entrar na justiça mesmo tendo convicção de que teve seu direito violado”, entende Clóvis Roberto Scherer, do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos).
Toda essa situação lembra a “boiada”, termo usado pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião ministerial de 22 de abril de 2020, quando sugeriu aproveitar que as atenções da mídia estavam voltadas à pandemia de covid-19 para aprovar uma série de mudanças nas regras do setor.
Fonte: Folha de S.Paulo